Pe. Aureliano José da costa Júnior, mps
A questão é de alta complexidade, mas tentaremos abordá-la da forma mais simples possível. Desde o renascimento, a cultura e a sociedade adentram nas profundas águas do humanismo, ocasionando paulatinamente a inversão satânica que impera no mundo de hoje: a expulsão de Cristo do centro (da cultura, sociedade, política, economia e, pasmem!, inclusive da própria fé), e a entronização do homem como senhor absoluto, para o qual tudo deve convergir. O mais triste são as tentativas teológicas de embasamento de tal situação, desvirtuando a sã doutrina e tornando-a uma religião do homem, interpretando muito mal o verso do Salmo 8 que diz: ‘pouco abaixo de Deus o fizestes, coroando-o de glória e esplendor’. Para os ouvidos formados na perniciosa doutrina do humanismo, é ofensivo tudo o que de algum modo rebaixa o homem, porém, nesse caso, não se trata de rebaixamento, mas somente de colocá-lo em seu devido lugar. As mentes destruídas por tais crenças tornam-se incapazes de reflexão, e rejeitam com veemência todo sinal de heresia contra o dogma da absoluta e insuperável dignidade do homem. O perigo do humanismo, como de toda mentira satânica, é a astuta mistura do erro com a verdade, levando muitos a ingerir veneno acreditando ser remédio. Por isso, um humanista jamais poderia concordar que uma formiga, sob certo aspecto e em determinada circunstância, vale sim, mais que o homem. Expliquemos o porquê.
Diz Aristóteles que o próprio do sábio é ordenar. Ora, Deus é a própria Sabedoria, logo, tudo o que faz, faz com ordem. No que diz respeito à criação, podemos falar de dupla ordem, uma relativa a dignidade gradativa dos seres, ordenados do inferior ao superior, e uma relativa ao fim.
A criação divina é tradicionalmente dividida em sete camadas, ou graus. A primeira é a dos seres minerais, que existem, mas não vivem, nem sentem, nem conhecem. A segunda é a das plantas, que vivem. A terceira é a dos animais brutos, que vivem e conhecem sensitivamente. A quarta a dos homens, que vivem e conhecem racionalmente. A quinta a dos anjos, que conhecem por intuição. A sexta é a da graça, que torna os seres elevados a ela participantes da própria natureza divina. E a sétima, ápice de tudo criado, é a graça da união hipostática, da união perfeita das naturezas divina e humana na pessoa do Verbo, que supera toda e qualquer proximidade dos demais seres a Deus. Nessa ordem, o homem está claramente posto acima da formiga, seja por sua própria natureza racional, e com maior razão, por sua elevação sobrenatural, mormente nos batizados, elevados a camada da graça santificante e feitos partícipes da natureza divina.
Aqui está a raiz do problema: por ter sido elevado a tão alta dignidade, o que é verdade, o homem acaba crendo estar fixado nessa altura incondicionalmente, e com o tempo corre o risco de considerar-se no mesmo patamar que o próprio Deus ou superior a Ele. E é exatamente aqui que o homem cai e torna-se de menor valor que uma formiga. Pois no exato momento em que o homem deixa de ordenar-se a Deus, ele se diminui tanto, que mesmo uma formiguinha tem maior valor que o dele, pois ela em sua pequenez continua ordenada ao seu fim, que em última instância, como o fim de todo o universo criado, é a glória de Deus.
Escreve Santo Tomás no Compêndio de Teologia que “considera-se a bondade das criaturas não somente enquanto elas subsistem na sua natureza, mas também enquanto a perfeição dessa bondade consiste na ordenação delas para o fim, pela sua operação, resta agora considerar os defeitos da bondade das criaturas nas operações, pelas quais são dirigidas para o fim”. Portanto, quando no agir a criatura afasta-se do fim, ela torna-se defeituosa, perdendo sob esse aspecto da ordenação ao fim o valor que antes tinha. Acontece que “a corrupção do ótimo é o péssimo”. Sendo assim, quando criaturas intelectuais, como os anjos e os homens, desviam-se do seu fim, que é Deus, por serem ótimas, isto é, por estarem no ápice da criação, tornam-se péssimas, tendo seu valor absurdamente reduzido. Isso observa-se no princípio teológico de que o pecado, por ser mal sobrenatural, ainda que venial, supera todos os males naturais do universo, assim como o bem sobrenatural de um único indivíduo supera os bens naturais de toda criação, tamanha distância existente entre a natureza e a graça. Pelo pecado mortal o homem perde a graça santificante e torna-se, semelhante aos irracionais. O amante tende a assemelhar-se ao amado, portanto, quando pelo pecado o homem ama mais as criaturas que o criador, torna-se semelhante a elas, e, por conseguinte, inferior aquilo que ele mesmo é por natureza e por graça.
O desastre do pecado, contudo, é ainda maior, principalmente se levado pelo humanismo. Assemelha-se ao pecado de Judas, que entrega o filho de Deus. Também aquele que quer colocar o homem no trono da divindade, recusa o filho de Deus e torna-se um traidor dele. E o que disse Jesus sobre Judas? “Ai daquele homem por quem o Filho do Homem é traído! Seria melhor para esse homem que jamais tivesse nascido!” (Mt 26,24). Não nascer é não ser, e não ser é inferior a ser. Logo, aquele que trai Jesus se reduz ao não ser pelo pecado tornando-se por isso inferior a uma formiga, que por não pecar, não pode ser reduzida ao não ser como o pecador. Então sim, há um momento em que a formiga vale mais que o ser humano: o momento do pecado, no qual o homem se inferioriza tanto que se não fosse a misericordiosa providência de Deus que tudo governa e sustenta o homem no ser mesmo no ato do pecado, seria reduzido como que instantaneamente ao nada pela desordem a que adere pecando.
Poderíamos ter tratado tal questão diferente, dizendo que a formiga vale mais que o homem circunstancialmente e a modo de analogia, quando por certas ações suas supera ações análogas do homem, como a operosidade e a disciplina. Mas tal abordagem ainda seria um tanto quanto humanista. Fizemos o esforço de, iluminados pela Teologia, mergulharmos na realidade profunda das coisas para aclarar que infelizmente o mundo que cultua o homem e a ele se ordena é o mundo que hoje vivemos, tão claramente pior que o dos próprios animais irracionais. É o mundo da normalização do pecado. Os homens vivem, mas o melhor é que não tivessem nascido, que não existissem…
Contudo, nada de desespero. A contrição, o arrependimento, a confissão, nos arrancam do nada do pecado e nos elevam novamente ao valor altíssimo que possuímos como participantes da natureza divina. É uma decisão pessoal: queremos continuar vivendo uma vida inferior em qualidade a das formigas ou vamos nos decidir a viver na alta dignidade a que fomos chamados como filhos de Deus, membros de Cristo, templos do Espírito, participantes da natureza divina? A decisão é tua. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.
Observação: estritamente falando o homem, ainda que condenado existirá, enquanto a formiga retornará ao estado de matéria bruta que extingue sua existência. Há um bem na existência humana condenada, que é a glória dada a Deus e a sua justiça, além da manifestação da misericórdia divina, que podendo, não condena o homem tanto quanto mereceria. Mesmo a revolta dos mortais dá glória a Deus, como reza o salmista. Mas como dissemos, a questão é complexa e a abordamos da forma mais simples possível. Uma abordagem ainda mais profunda deixamos para uma próxima ocasião.